A arte cavalheiresca do arqueiro Zen de Eugen Herrigel
- Coletivo Othala
- 9 de mar. de 2022
- 3 min de leitura
Atualizado: 10 de mar. de 2022

Em meus devaneios, penso que a globalização facilitou vários encontros improváveis, que a internet nos deu uma verdadeira biblioteca de Babel ao alcance de nossas mãos. Na mesma medida que esses encontros acontecem, sou lembrada que as fronteiras linguísticas e culturais são mais difíceis de transpor do que as fronteiras físicas.
Há coisas, experiências, conceitos, que ficam há uma distância intransponível, distância esta que não pode ser medida em léguas ou metros, distâncias que só podem ser vencidas por pontes de palavras e afetos. Pontes mais fortes que aço, mais frágeis que folhas secas. Tal é o poder das palavras.
Foi buscando uma compreensão integral da Doutrina Zen que Eugen Herrigel deixou sua terra natal (Alemanha) e se lançou ao desconhecido. O que ganhamos foi este generoso livro que narra sua jornada de iniciação a arte dos arqueiros japoneses. Sua aventura começa aos 39 anos, quando já doutor em filosofia, ele e sua esposa se mudam para o Japão.
Foi mais do que a curiosidade intelectual que o guiou a sua aventura, desde jovem Herrigel se sentia encantado e fisgado, pelo mistério e pelo numinoso que a filosofia do Zen Budismo lhe transmitia.
Para mim, um dos momentos mais interessantes de sua jornada foi quando seu mestre arqueiro Kenzo Awa se recusa a continuar sua iniciação na Doutrina Magna, pois se sentira enganado pelo seu aprendiz alemão. Nosso colega ocidental se redime que tal malandragem não se dera de modo deliberado (ele havia dobrado o arco, ao invés de se deixar ser dobrado por ele!). Para seu mestre: "O que obstrui o caminho é a vontade demasiadamente ativa" (pág. 42), e Eugen ainda tinha muito a aprender sobre o princípio da Wu-Wei (não ação).
O mestre arqueiro através dessa arte milenar lhe convidava a se desprender de si mesmo: "Para perdemos o eu, é necessário cortarmos todas as amarras, sejam quais forem, para que a alma, submergida em si mesma, recupere todo o poder de sua indizível origem" (pág. 45).
A vivência relatada por Herrigel neste livro me lembra uma das máximas alquímicas "rasgai os livros para que não se rompam os vossos corações" (Jung, OC 16/2, pág. 161), que nos alerta que a arte alquímica - tal como a opus do viver - requer o homem por inteiro. Página a página vemos Eugen se desnudar e se despojar de sua intelectualidade tão bem desenvolvida (poderíamos supor que uma de suas funções da consciência mais diferenciadas era a pensamento), para dar espaço para suas funções irracionais, em especial a intuição.
"'Quando estiramos a corda ao máximo', disse-nos o mestre, 'o arco abarca o universo e é importante saber curvá-lo adequadamente'" (pág. 29). Tal é o ego que tem o desafio de abarcar e sustentar adequadamente a tensão de contrários de sua totalidade (Self), não pode nem ser rígido nem frouxo em demasia, assim como a corda da cítara de Buda.
Penso em inúmeras razões para se ler A arte cavalheiresca do arqueiro Zen:
É uma leitura curta e prazerosa;
Presenteia-nos com um vasto banco imagético, e como junguianos isto é um banquete;
É um livro acessível e enriquecedor tanto para quem tem anos de estudo no Zen (como Herrigel tinha) quanto para quem está começando a conhecer mais sobre este universo;
É mister pontuar o excelente trabalho do tradutor da obra, J. C. Ismael foi generoso em notas explicativas ao longo do texto.
Aqui aprendi que o arqueiro que maneja o arco, maneja a si mesmo, nas palavras de J. C. Ismael "Quando o arqueiro dispara, acerta a si próprio" (pág. 7).
Termino o texto de hoje com um diálogo entre Eugen Herrigel e seu mestre Kenzo Awa:
"'Temo', respondi-lhe, 'que já não compreendo mais nada. Até o mais simples me parece o mais confuso. Sou eu quem estira o arco ou é o arco que me leva ao estado de máxima tensão? Sou eu quem acerta o alvo ou é o alvo que acerta em mim? (...) Todas essas coisas, o arco, a flecha, o alvo e eu estamos todos enredados de tal maneira que não consigo separá-las. E até o desejo de fazê-lo desapareceu. Porque, quando seguro o arco e o disparo, tudo fica tão claro, tão unívoco, tão ridiculamente simples...
'Nesse exato momento', interrompeu-me o mestre, 'a corda do arco acaba de atravessá-lo por inteiro'". (pág. 74).
Que a corda do arco possa também nos atravessar por inteiro em nossa aventura que é o viver!
Escrito por @psi.jugi!
A arte cavalheiresca do arqueiro Zen de Eugen Herrigel, Editora Pensamento, 2006.
A psicologia da transferência de C. G. Jung. OC 16/2. Editora Vozes, 2011.
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