Série: Midnight Dinner - Tokyo Stories
- Coletivo Othala
- 23 de mar. de 2022
- 3 min de leitura
Sob o risco de parecer monotemática, me permita fazer uma última indicação de uma obra japonesa (por enquanto).
Por aqui já fiz a indicação de um ensaio sobre estética e cultura¹, um artigo sobre a práxis do analista e o teatro Nô² e um relato de experiência de um alemão aprendendo sobre a arte do arqueiro Zen³, hoje eu lhes trago uma série.
Você já viu Midnight Dinner?
A série dirigida por Joji Matsuouka e Nobuhiro Yamashita tem duas temporadas e é uma série original da Netflix. Conta a história deum restaurante e seu chef, a quem os clientes se referem apenas como Mestre (estrelado por Kaoru Kobayashi).
A série funciona com uma antologia, cada episódio tem seu núcleo principal de história próprio que interage com o mesmo mestre cozinheiro e alguns clientes do restaurante. Esse tipo de narrativa, além de trazer leveza para a série, também valoriza as histórias que como a vida, acontecem entre encontros e desencontros.
Vou deixar que o Mestre fale por si:
"Quando as pessoas terminam o seu dia e correm para casa, o meu dia começa. Minha lanchonete funciona da meia-noite às sete da manhã. É conhecida como 'Jantar da Meia-noite'. (...) Tenho muitos clientes? Mais do que se esperaria".
É na noite, na penumbra que a transformação nas relações acontecem, o que me lembra o artigo que li de Kazuhiko Higuchi² (2019): "No oriente, o começo e o fim de muitas coisas acontecem no crepúsculo ao invés de na plena claridade solar". É sob a luz da lua, sob a luz de velas e lanternas oscilantes do restaurante, ao redor do prato quente, que os afetos emergem.
Por isso é verdade afirmar que o chef do restaurante não cozinha apenas missô, ele é um cozinheiro de afetos. Um verdadeiro alquimista de almas, um analista. Lembrei-me de Jung (2011) "Patientia et mora (paciência e lentidão) são indispensáveis nesse trabalho. Temos que saber esperar.". Com suas suaves e acertadas intervenções ele junta aqueles que estão separados pela discórdia (coagula) e ajuda outras a retirarem seus véus projetivos separando o que é sua a percepção subjetiva e o que é comportamento real de seu interlocutor (solutio).
Assuntos muito difíceis, duras verdades e desafios da vida se desenrolam na tela colocando nós, espectadoras (es), em nosso próprio jogo de projeções, nos identificando com os temas, e sentimos nossa própria vida ser temperadas. Mas não é uma série que perturba ou agride, não é invasiva, mas sempre convida a reflexão. Acho que foi isso que possibilitou que a série tratasse de temas muito difíceis - luto, traição, desejo, parentalidade, amores não correspondidos, parentes abusivos, vício em pornografia - de uma forma leve, poética, plural, sempre nos surpreendendo com seu desfecho.
Um chef atento alquimista em seu laboratório de afetos e sabores, a paciência do mestre e a sutileza da narrativa nos entrega uma série leve - como espuma de mar. Ah! Se falamos de cozinha e alquimia minha mente imediatamente lembra do livro do escritor brasileiro Gustavo Barcellos, O banquete de psique - Imaginação, cultura e psicologia da alimentação, Editora Vozes, deixo aqui, novamente, minha indicação deste livro.
O horário diferenciado do funcionamento do restaurante não é a única coisa peculiar sobre ele. Outra coisa curiosa é que o cardápio conta com pouquíssimos itens (seu menu fixo conta com sopa missô com carne de porco e algumas bebidas), mas ele se dispõe a fazer pratos fora desse menu reduzido, se os clientes levarem os ingredientes.
Adoro esse detalhe, me provoca a refletir sobre dinâmicas das relações... Penso que há coisas que naturalmente ofertamos ao outro, mas há outras coisas que são possíveis de serem servidas e degustadas na relação, se nosso companheiro nutre e investe, nos ofertando os ingredientes necessários.
Falando em desgutação, os pratos e comidas da série são maravilhosas! Um verdadeiro deleite e receitas inspiradoras!
Dica de @psi.jugi!
Esta é uma série original da Netflix!
Direção: Joji Matsuouka e Nobuhiro Yamashita.
Roteiro: Yarô Abe, Kensaku Kojima, Katsuhiro Manabe, Kôsuke Mukai, Marina Mushima.
Também citei:
1. Em louvor da sombra de Junichiro Tanizaki. Editora: Companhia Penguin, 2017.
2. A psicanálise junguiana no contexto da cultura japonesa, de Kazuhiko Higuchi, em Psicanálise Junguiana organizado por Murray Stein, Editora Vozes, 2019.
3. A arte cavalheiresca do arqueiro Zen de Eugen Herrigel, Editora Pensamento, 2006.
4. A psicologia da transferência de C. G. Jung. OC 16/2. Editora Vozes, 2011.
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