Em louvor da sombra de Junichiro Tanizaki
- Coletivo Othala
- 6 de dez. de 2021
- 4 min de leitura

Acho que a maneira de como certos livros chegam até nossas mãos diz muito sobre eles. No caso do livro Em louvor da sombra foi uma indicação de James Hillman.
Infelizmente, não foi uma indicação pessoal sussurrada ao pé do ouvido, no balançar da luz oscilante de chouchin*, na penumbra de um restaurante tradicional de Tóquio, como eu gostaria que tivesse sido. Mas a indicação veio de maneira indireta enquanto eu lia um ensaio dele um tanto difícil e intragável: Notas sobre a supremacia branca. Sobre este texto de Hillman, que por sinal indico muito!, falarei outro dia, hoje, justamente para perturbar nosso vício em promover luzes ofuscantes, vou falar justamente sobre o texto de Junichiro Tanizaki e sua maravilhosa ode às sombras.
Para começar, não foi por acaso que fiz questão de mergulhá-los na atmosfera de penumbra e sussurros ao descrever minha fantasia com James Hillman, Tanizaki, assim como o escritor americano, é mestre em construir imagens e nos envolver em um mundo de sensações através das palavras. Por isso, se você gosta dos livros de Hillman e do nosso brasileiro Gustavo Barcellos, é certo de que vai gostar da escrita de Tanizaki.
Posso dizer sem clichês, que este livro é uma viagem ao Japão, mas ao Japão de Junichiro Tanizaki, que nascido em 1886 procura integrar seu gosto e valor pela estética tradicional japonesa e as comodidades e modernidades ocidentais que vinham inundando seu país desde o início do século XX (este livro foi publicado originalmente em 1933!). Arquitetura, estética, culinária, decoração, teatro, música, design... onde quer que você possa pousar os olhos e sentir com a pele, Tanizaki olhou, tateou, sentiu, elaborou e nos entregou servido quente em uma louça escura e ofuscada pelo lustro dos anos.
Em louvor das sombras não exalta apenas as sombras e penumbras, mas todo o campo dos sentidos e sensações. Tão lindo, tão delicado, tão poderoso e tão delicioso, é uma leitura afrodisíaca e arrebatadora. O livro é tão imersivo que para mim era difícil lê-lo à luz do dia, tão imersivo, que por alguns dias (e noites) eu só conseguia falar sobre ele.
Ele escreve: "Diz-se que a culinária japonesa é para ser contemplada e não consumida, mas aqui eu diria mais: ela é digna de meditação" (pág. 34). Eu lhes digo que este livro não é pra ser consumido, mas contemplado e meditado.
Cabe aqui uma outra nota, é impressionante o como a estética e a cultura japonesa é fortemente influenciada pelo Zen, principalmente os conceitos de Yin e Wu-Wei (não-ação). Nossa! Quero falar sobre outro livro que li, em seguida desse que foi A Arte Cavalhereisca do Arqueiro Zen de Eugen Herrigel, mas uma coisa de cada vez! Voltemos ao livro de hoje, Herrigel terá sua vez por aqui em outro dia.
Para mim, uma das coisas mais ricas desse livro é a reflexão de que toda e qualquer estética sempre vem acompanhada de sua ética. Nossas escolhas, nossos gostos, aquilo que consideramos belo tudo diz diretamente sobre nossos valores morais, nosso ethos e nosso devir.
"De modo geral, nós os japoneses sentimos desassossego diante de objetos cintilantes. No ocidente, prata, ferro ou cobre são usados na fabricação de aparelhos de jantar e talheres, os quais são polidos até brilhar, coisa que não apreciamos. Ao contrário, apraz-nos observar o tempo marcar sua passagem esmaecendo o brilho do metal, queimando e esfumaçando sua superfície. (...) Nosso gosto é pelo brilho mortiço que remete ao lustro dos anos. Lustro dos anos é expressão poética, pois tal lustro na verdade nada mais é do que sebo acumulado. Ou seja o brilho resulta da contínua manipulação de áreas ou objetos: tocados e acariciados constantemente, tais peças acabam absorvendo a gordura das mãos". (pág. 28-30).
Ao nos apresentar de maneira tão maravilhosa o embate entre luzes e sombra, ação e contemplação, ancestralidade e modernidade, ocidente e oriente, o autor expande nossos horizontes perceptivos. Na mesma medida em que fui provocada a pensar o confronto entre Japão e o ocidente através desse livro, me via pensando em como nossa latinidade e nossa africanidade foi atravessada pela ocidentalização colonial.
Assim como busca uma síntese entre contradições, mantendo-se fiel a seu coração e alma, Jurichino também nos convida a refletir sobre luzes e sombras que habitam nossa psique e nosso modo de agir. Para junguiano este ensaio é um banquete para meditarmos em como cada cultura reflete psique do seu povo… Ou será o povo que reflete a psique de sua cultura?! O que o Oriente e o Ocidente podem construir juntos? O que nossas luzes podem aprender com as nossas sombras?
Me pergunto se Jung leu esse texto, com certeza teria muito a conversar com Tanizaki. Lembro-me de ler Jung (OC 16/2) enfatizando que o processo de individuação é um processo interpessoal, que o encontro com a alteridade do outro nos desperta para o encontro com nosso Si-Mesmo, acredito que o mesmo pode ser transposto para o nível macrossocial. Uma sociedade e um grupo se desenvolve no encontro com a diversidade, temos neste belíssimo ensaio muitas oportunidades enquanto brasileiros.
Antes de terminar a indicação de hoje, acho muito importante pontuar o trabalho de excelência do tradutor da obra Leiko Gotoda, que, apesar do imenso desafio que tinha em mãos, fez justiça a sensibilidade estética do autor. Foi só depois de ler que eu descobri que sua mãe era a irmã mais nova de Tanizaki, o que - convenhamos - acrescenta outra camada de afeto para nós que lemos a versão traduzida para português.
*chouchin: lanterna portátil feita de papel em formado cilíndrico onde se leva uma vela acesa.
Em louvor da sombra
Autor: Junichiro Tanizaki
Editora: Companhia Penguin
1ª Edição, 2017.
Dica de @psi.jugi
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